segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Os automóveis na velha São Paulo


Consultando minha coleção paulística para preparar os artigos em comemoração ao aniversário da cidade, me deparei com diversos relatos sobre os primeiros automóveis e seus intrépidos chauffeurs pelas ruas paulistanas. Sendo o automóvel algo tão intrínseco no cotidiano da cidade, achei por bem começar contando um pouco de sua história.

Todos são unânimes em afirmar que primeiro automóvel a rodar pela cidade, em 1893, pertencia à Henrique Santos-Dumont, morador dos Campos Elíseos. Era um Daimler inglês a vapor, com caldeira, fornalha e chaminé.

Quando saía pelas irregulares ruas paulistanas atraía olhares curiosos, como o do menino Jorge, morador no mesmo bairro que o irmão do grande inventor:

"Um domingo, entre 1899 e 1900, eu estava à janela, e escutei para o lado da esquina roncos ou sopros repetidos, seguidos de um formidável barulho de trepidação. Logo apareceu o estranho veículo, que de repente parou. Eu que já tinha ouvido falar em automóvel (com o nome de carro elétrico) gritei para dentro: Venham ver um carro elétrico!

No banco da frente vinha Luis Dumont, irmão de Santos Dumont, que já começava a ser conhecido em Paris, por causa dos balões dirigíveis que estava inventando.
Ao seu lado, outro homem (talvez o esportista Antonio Prado Jr., que teria entre 19 e 20 anos). [...] Desceram. Juntou molecada. Uns dez. O Dumont tirou de debaixo do banco um ferro com a forma da letra Z.

Ajustou-o a uma ponta saliente, pela frente do carro. Tive a impressão de que ele estava "dando corda", como nos brinquedos de criança. Suou. Depois veio o outro. Suou. Não conseguiram. Ofereceu-se um homem. Não conseguiu. Luis Dumont conseguiu de repente, o carro deu estremeções violentos, embarcaram e partiram.

- Aquilo não vai dar certo. A gente anda depressa, mas quando pára, perde o tempo, sua e chega emporcalhado e cansado.

- Vai dar certo. Você ainda verá carros com a velocidade de trinta quilômetros por hora, sem desarranjos."¹

Não se guardou o nome do profeta, mas deu certo sim, e creio ser essa a velocidade média na cidade atualmente.

Mas a exibição do automobilista aguçou os olhos do fisco municipal, que logo tratou de cobrar um imposto sobre o novo veículo. Henrique Dumont não gostou, e, em 3 de fevereiro de 1901, mandou uma carta ao então prefeito, Conselheiro Antonio Prado:

"O Dr. Henrique Santos Dumont vem requerer baixa no lançamento do imposto sobre seu 'Automobile', pelas seguintes razões: o suplicante, sendo o primeiro introdutor desse sistema de veículo nesta cidade, o fez com sacrifício de seus interesses e mais para dotar a nossa cidade com esse exemplar de veículo automobile (...)".

No documento dava outras razões, reclamando do mau calçamento das ruas, que causava danos ao veículo, mas sua argumentção não foi aceita pela municipalidade. Uns dizem que, desgostoso, Henrique encostou o carro na garagem, mas o certo é que ele não conseguiu a placa número 1, que ficou com Menotti Falchi e logo foi vendida para o industrial Francesco Matarazzo. No começo do século havia uma disputa pelas placas baixas. O médico Walter Seng, dono da placa 2, recusou proposta de 5 contos de réis de Matarazzo e, em resposta, ofereceu o dobro pela chapa 1. Entre os donos de placas de apenas um algarismo também estavam o Conde Eduardo Prates, Antonio Prado Jr., Pérsio Pacheco e Silva e o Coronel Piedade.

Poucos anos depois desse incidente o automóvel deixava de ser uma coisa estranha para se fazer cada vez mais presente na vida da cidade. Em 1906 já havia cerca de 30 na cidade, o que levou o presidente do Estado solicitar aos proprietários que cedessem seus veículos para a comitiva do secretário norte-americano Elihu Rooth. Manoel Guedes, Alvaro Meneses e Prado Jr. foram alguns que atenderam ao pedido oficial. Contam que muitos automóveis tinham pintado nas portas o monograma do proprietário, como era uso nas antigas carruagens. O certo é que alguns eram decorados com vasos de flores e cortinas.

O governo estadual logo pensou em adquirir um automóvel e aposentar os coches puxados por quatro animais. Através de uma lista de contribuições do comércio, foi oferecido um veículo ao governo. O primeiro chofer oficial da cidade foi Salvador Câmara, cuja nomeação foi assinada pelo então secretário de Justiça Washington Luis.²

Sobre as aulas de direção, quem nos conta é Jorge Americano; curioso notar o "método de ensino" aplicado pelo instrutor (grifo meu):

"Chama-se Cláudio. Creio que era em São Paulo o primeiro proprietário de auto-escola para motoristas profissionais.

Vinha o carro, com capota de lona, todas as manhãs à mesma hora, subindo a ladeira, com um aluno na direção e três outros, atentos, no banco de trás.

Desde que começava a subida Cláudio gritava com acento italiano, para o da direção: - "A mudança, desgraçado! Muda para segunda, seu burro!" O "burro" era de reflexos tardios e quando ia fazer a mudança, toda roncada, o carro perdia a velocidade, parava o motor, e começava a andar para trás.

- "O breque, estúpido, o breque! Madona! Quase que me escangalha o carro. Sua besta, você nunca há de aprender a guiar. Não me faça essa cara de idiota, larga daí e passa para trás."³

Mas já estava decretado que, burros ou não, surgiriam cada vez mais motoristas e a história do automóvel em São Paulo seria marcante.

A primeira viagem da capital até Santos teve início na manhã de 16 de abril de 1908, uma quinta-feira santa. Antonio Prado Jr., ao volante de um Motobloc 30 cavalos, acompanhado do major Bento Canabarro, do Dr. Mario Cardim, do engenheiro Clóvis Glicério (dono do carro) e do mecânico Malé.

Atingiram a cidade de Santos no dia seguinte, as 7 horas da noite, depois de inúmeras dificuldades e peripécias: 66 km em 25 horas de viagem.4

Começava a era do Automóvel e os velhos tílburis, landôs, coupês, vitórias e os elegantes phaetons virariam peças de museu, perdidos na bruma da saudade e das lembranças de uma cidade que não tem tempo para o passado.


Notas
1- São Paulo naquele tempo, Jorge Americano, Saraiva, 1957, p.198
2- São Paulo de nossos avós, Raimundo de Menezes, Saraiva, 1963, p. 76
3 -
São Paulo naquele tempo, Jorge Americano, Saraiva, 1957, p. 204
4-
São Paulo de nossos avós, Raimundo de Menezes, Saraiva, 1963, p. 74-75

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